domingo, 22 de outubro de 2017

Mar revolto com nevoeiro. Por Rita Coitinho

Em 2004, em algum shopping center de Brasília, encontramos por acaso, eu e meu companheiro, o saudoso camarada Sérgio Miranda. Lá pelo final da prosa, questionado sobre as questões que enfrentava - estava ainda filiado ao partido - Sérgio respondeu: quando há nevoeiro, o marinheiro leva o barco devagar.
Sérgio não está mais entre nós. Mas não tenho dúvida de que se estivesse concordaria com outra metáfora sobre marinheiros: não há vento favorável para quem não sabe a que porto se dirige. A conjuntura de hoje lembra o mar revolto e as forças de esquerda parecem canoas soltas ao sabor das ondas. Temos planos para 2018, mas não sabemos se haverá 2018. Se houver, vamos de Lula, mas não sabemos se Lula poderá ir conosco. Criamos uma frente, mas não a dotamos de instrumentos suficientes, seguimos no cada um por si, cada canoa para um lado e ninguém para lugar algum.
E a todas essas os escândalos se multiplicam, as facções retrógadas avançam rumo ao porto principal. Ninguém mais se surpreende com nada e alternativas autoritárias vão ganhando espaço em corações e mentes desiludidos. E nós, como não conseguimos dissipar o nevoeiro nem sabemos a que porto pretendemos chegar, seguimos rodopiando ao sabor dos acontecimentos. Nos conformamos com a situação descrita por aquele verso bonito de Paulinho da Viola: “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”...
Mas o bom marinheiro sabe que quase sempre é possível atravessar a tempestade. Às vezes um erro de cálculo, a falta de um equipamento ou a subestimação da força das ondas e do vento – que o levam a não atracar quando era tempo – podem levar ao desastre. É por isso que as navegações provocaram o surgimento de tantos equipamentos modernos e de tantas técnicas para observar e prever o tempo. Com planejamento, boa tripulação, instrumentos adequados e rota bem estudada, é quase impossível haver um naufrágio (conheci um sujeito que tinha medo de avião. Quando precisava ir a um congresso internacional, ia somente se desse tempo de ir de navio. Por quê? Porque as estatísticas de naufrágios são ínfimas se comparadas às quedas de avião).
O mar da história também é revolto e repleto de tempestades. A ciência da política não consegue prever todos os eventos – assim como a climatologia – mas é possível, a partir do conhecimento histórico e sociológico, fazer analogias e arriscar algumas previsões. Os capitães dos barcos da política precisam esmerar-se em dominar essa ciência e traçar o caminho. O primeiro passo é escolher o porto. Em seguida, deve-se mapear os locais de atracamento intermediário, onde se pode manter a embarcação a salvo em caso de ventos e ondas mais fortes. Mas é preciso ter o percurso claro, e os planos para alcançá-lo. Necessário ainda convencer os passageiros a embarcar. Quem embarcaria numa nau sem rumo, sem plano de navegação, sem tripulação confiável e sem chances de chegar ao destino?
Isso talvez explique um pouco a “incrível” falta de reação do povo brasileiro à sucessão de escândalos. Ela não é incrível: é previsível. Se nossas e nossos capitães não apresentam uma rota que encante corações e desperte a vontade a atirar-se ao mar, quem aceitará ser levado pelas ondas, ao sabor dos ventos ruins, enquanto outros marinheiros assumem o comando da expedição? Mas, note-se: ainda não é a maioria que deseja embarcar nesses navios de bandeira duvidosa. A maioria ainda está com os pés bem fincados no chão, aguardando ser convencida de qual bilhete comprar. Falta quem os convença. Falta uma embarcação segura, bem construída e resistente, além da rota a percorrer. A frente nacional e popular tem todo o jeito de barco, mas está cheia de furos, por onde a água vai entrar. É preciso tampar os furos, unificar a tripulação, costurar bem as velas, traçar os cenários. Quantos? Todos aqueles que podemos prever. Quem pode fazer isso? As capitãs e os capitães, esses em quem confiamos, que têm visibilidade, alguns têm mandatos - outros já tiveram -, comandam sindicatos, movimentos, tiveram papel de destaque nos governos passados... Todos olhamos para esses capitães e esperamos que nos digam que rota seguir. Se não nos dizem nada convincente, seguimos na luta pela vida, porque esta não aceita adiamentos.

Encerro com o verso de Fernando Pessoa: “navegar é preciso”. Nos dois sentidos.

O que os pobres comem. Por Urariano Mota

As notícias desta semana atualizaram uma fala do prefeito de São Paulo, que em vídeo de 2011 gritou: “Pobre não tem hábito alimentar”. Essa frase lapidar de João Doria esteve de volta quando ele anunciou a distribuição da farinata – mistura de fascio e lixo de comida - como ajuda alimentar para os pobres e crianças em creches.
No vídeo, o então apresentador Doria repreendeu um candidato que havia apresentado um programa que incluía hábitos alimentares da gente do povo. E gritou, o burguês Doria, cheio de ciência e autoridade:
- Hábitos alimentares?! Você acha que gente humilde, pobre, miserável, lá vai ter hábito alimentar? Se ele se alimentar, ele tem que dizer graças a Deus. O pobre tem fome, não tem hábito alimentar. Por que essa insistência em um tema como esse?
Ontem, soubemos que o prefeito desistiu de incluir na merenda das escolas da rede municipal de São Paulo a ração maravilhosa. Mas ele continua com a farinata para os pobres adultos, que será distribuída pela assistência social da prefeitura. Então, anoto brevíssimas observações para essa caridade típica do burguês.
Primeiro, não é demais ensinar ao senhor prefeito que pobres são pessoas, são gente. Se o miserável burgomestre de São Paulo não sabe, vou lhe deixar aqui duas ou três coisas, do alto da minha experiência de pobre, que em dias mais sombrios também passou fome. Saiba, prefeito, que é uma experiência universal: as pessoas, por mais carentes, adaptam ou adotam um caminho de vida humana em meio à penúria. Assim, em todo Nordeste brasileiro, do sertão ao litoral, as pessoas de todas as classes gostam de comer cuscuz, arroz e feijão. Isso é um hábito, pré-feito, isso é um gosto, uma escolha, um instinto de nacionalidade que vai de geração a geração. Entre os pobres, até mesmo entre os mais miseráveis, existe o hábito de comer carne, ou algo que pareça ou lembre carne, quando nada vezes nada se possui para comer.
Saiba, perdido feito, que eu já vi família de quem era vizinho comer pés e cabeças de galinha, cozidos em um caldeirão. Quero dizer, comer aquilo não era bem uma opção, mas uma resistência do hábito de se comer carne no almoço. Isto agora é cultura, burromestre, aprenda: uma mãe pode fritar um só ovo para quatro filhos, ou pegar meio quilo de carne de terceira, cheia de pelancas e osso, e servi-la para numerosa família. De pedacinho em pedacinho, de taquinho em taquinho de carne. Ou até mesmo – no extremo – sem ter nada vezes nada, uma senhora mãe pode pegar ervas no mato e fervê-las para servir em farofa. Nesse limite, ervas com farinha – não farinata, mas farinha de mandioca – essas pessoas lembram o hábito alimentar de comer carne, feijão, arroz. Que passa então a ser sonhado para melhor oportunidade.
Um exemplo, que talvez o magnífico burromestre entenda: um homem pode viver sozinho, sem mulher, mas isso não quer dizer que ele tenha se acostumado a não ter o calor do sexo. Ou que ele tenha se transformado em uma nova categoria de marciano. Então, tente compreender num máximo esforço, pré-histórico Doria: pobres também são pessoas que têm hábitos seculares, que estão inscritos no seu DNA antes que tenham consciência. Quero dizer: o hábito é um modo de ser, quando não, uma marca inescapável de identidade. Os pobres vivem e se adaptam como podem, mas têm sua identidade, seus hábitos alimentares, e o miserável burromestre não sabe.
E atenção, olhem só até onde poderemos cair. A proposta da farinata – fascistada - levada adiante por Doria já foi aprovada este ano na Câmara dos Deputados e agora tramita no Senado. Ou seja: a ração para os pobres ameaça se tornar uma lei nacional de combate à fome. Amigos, saibam que depois da legalização do trabalho escravo, poderemos ter ração de lixo em farinha para os miseráveis do Brasil. O Estado a que chegamos supera os mais inverossímeis pesadelos.
Daí que não será indevida a grande antecipação de Swift , que piedoso já havia notado a terrível condição dos miseráveis que não têm o que comer:
“É motivo de melancolia para aqueles que passeiam por esta grande cidade, ou que viajam pelo campo, verem nas ruas, nas estradas, e às portas das barracas, uma multidão de pedintes do sexo feminino, seguidas por três, quatro, ou seis crianças, todas em farrapos, a importunarem cada passante pedindo esmola”.
E num ato de gênio criou em 1729 a farinata de Doria:
“Foi-me garantido por um muito sábio americano, que uma criança jovem e saudável, bem alimentada, com um ano de idade, é do mais delicioso, o alimento mais nutriente e completo – seja estufada, grelhada, assada, ou cozida. E não tenho qualquer dúvida de que poderá igualmente ser servida de fricassé ou num ragu... Uma criança dará duas doses numa festa de amigos; e se for a família a jantar sozinha, os quartos da frente, ou de trás, proporcionarão um prato razoável. Se temperada com um pouco de sal ou pimenta e cozida, estará ainda bem conservada no quarto dia, especialmente no Inverno.
Concedo que esta comida venha a ser de certo modo cara e, portanto, estará muito adequada aos senhorios – e dado que estes já devoraram a maior parte dos pais, poderão ter direito de preferência sobre os filhos. A carne dos bebés estará dentro do prazo o ano todo, mas será mais abundante um pouco antes, e depois, de março”.
Ao fim, penso que em lugar do título “O que os pobres comem”, mais próprio seria ter escrito:
O que come os pobres

A resposta é simples: todo carnívoro de classe come os pobres. Gente à semelhança de porco feito Geddel, Blairo Maggi. Gente feito vampiro à semelhança de Michel Temer. Gente feito os parlamentares vendidos na Câmara e no Senado. Todo capital assim representado, todo capitalista come os pobres. Swift já dizia.

Direita, esquerda e realidade. Por Arnaldo Jabor

Impressionei-me há pouco com uma polêmica ilustrativa entre o professor Samuel Pessoa e o professor Rui Fausto na revista “Piauí”. Os debatedores são dois homens de alto nível, ilustres, mas dava para ver o desejo exasperado de Rui Fausto defendendo os conceitos que o formaram, no seio mais profundo do marxismo. Pessoa defendia mudanças pragmáticas na ideologia, mas Rui se apegou à tentativa de salvar sua fé, propondo um “capitalismo cerceado, autolimitado”, quase um capitalismo sem mercado. Quase repetindo a frase famosa de Geisel quando disse que era a favor do capitalismo, mas contra o lucro.
Pessoa também diz: “Não ocorre a Rui que alguém possa ter reavaliado suas ideias em direção a uma aplicação possível da social-democracia. Quem evolui é imediatamente tachado de neoliberal ou fascista”. Na mosca. A grandeza de uma nova esquerda teria de ser a aceitação do possível, mas isso não é sedutor.
E, hoje, vemos a urgente necessidade de uma reforma no país, quase com perda total, pela estupidez brizolista da presidenta. E vemos a universidade crivada de agitação e propaganda pelos professores. Vemos a espantosa ignorância dos que protestam contra a revisão do país.
Por isso, dediquei-me a listar impressões sobre esquerda e direita, na acepção primitiva de nossa paisagem ideológica. Aí vai.
A esquerda se considera o Bem. A direita se considera o Bem. Ninguém bate no peito e grita: “Eu sou o Mal!”. Ninguém é canalha e todo mundo se acha meio “de esquerda”, porque sabe que essa palavra ostenta um halo luzente, como uma coroa de santinho. Ninguém quer ser “de direita” – palavra com o estigma da peste, da maldade contra o povo.
O esquerdista de punho cerrado e carteirinha se sente justo e abençoado por um ideal, e absolvido por seus erros. Ele quer a “purificação” da sociedade, e tão nobre é esse anseio que ele pode ignorar incômodos detalhes da política normal – a santidade não precisa da prudência. As complexidades da democracia o entediam e são lidas como frescura, vacilação pequeno-burguesa e, no limite, traição; macho vai à luta em linha reta, ignorando obstáculos – hesitação é coisa de viado (aliás, quem escreve “veado” é “viado” – apud Millôr F.).
Ele ignora meios objetivos, pois se acha fadado à vitória final que virá um dia. Quando? Ele não sabe, mas tem fé, como um bispo da pastoral.
Como será essa “redenção”? Ela é uma vaga imagem de massas cantando nas praças, punhos erguidos, todos regidos por chefes iluminados, passando por cima da democracia, esta coisa labiríntica que enche o saco. A esquerda ama uma categoria imaginária chamada “povo”, sinônimo ibérico de “proletariado”.
Povo: multidões sem teto, sem terra, sem cultura política. Nossos pobres destituídos não opinam, não têm poder algum, mas, para o esquerdista tradicional, eles têm a aura, o charme franciscano do nada. Nada ter é santo. Eles fascinam por sua pureza, muito aquém do mercado ou da globalização da economia. Assim, a invencível circularidade do mundo ficaria sob controle, e os sentimentos “individualistas” ficariam domados sob a ideia da “solidariedade”, este remotíssimo sentimento humano.
O típico esquerdista sonha com um passado de paz (quando houve?). Sua utopia é regressiva, de marcha a ré. Eles até aceitam provisoriamente a complexidade para poder “operar”, mas sempre de olho no tal futuro simplório e meio maoísta. Aliás, a esquerda brasileira é um sarapatel de leninismo com populismo brizolista (vide Dilma) que o PT, aliado à pior direita patrimonialista, transformou em apropriação indébita.
A esquerda não tem memória. Dá um frio na espinha vê-la tender para os mesmos erros de sempre, os mesmo planos descolados da realidade. Mais terrível ainda: as derrotas e fracassos tendem a ser considerados “santos martírios” – estranha cruzada que se orgulha das derrotas. Quanto mais sofrimento, mais merecimento. Esse masoquismo óbvio não pode ser autocriticado , revisto, pois a esquerda tem pavor de cair num temido desvio de direita – o horror máximo! Qualquer esquerdista prefere ser chamado de “sectário”, em vez de “traidor’. Gostam de gestos radicais, impensados – coisas de machos.
Ao invés de se incluir no mundo real, criticamente, revendo dogmas e táticas, a esquerda continua, contra todas as evidências, querendo mudar, com enxadas e desejos, o mundo atual como se muda o curso de um rio. A ideia de revolução continua entranhada em suas cabeças como um tumor inoperável.
A esquerda acha que é o sujeito da história, enquanto a direita sabe que a história não tem sujeito; só tem objeto – o lucro.
A esquerda confunde utopia com projeto. Já o capitalista só tem um projeto: ele mesmo. A esquerda só tem fins; não tem meios. O burguês só tem meios – ele é um fim em si mesmo. “Um dia chegaremos lá” – diz a esquerda. O burguês já chegou. O esquerdista tradicional não aceita que o capitalismo tenha dominado o mundo, quando até a China sabe disso. A esquerda brasileira existe como nostalgia da esquerda – quer voltar a ser o que nunca foi.
A esquerda sonha com o futuro; a direita, com o mercado futuro. A esquerda sonha com o Bem; a direita com os bens. A esquerda só ama o todo; a direita só pensa na parte (a sua).
A esquerda é católica; a direita, luterana. A esquerda não acredita na democracia; a direita também não. A esquerda não leu “O Capital”; a direita também não, mas conhece o enredo.
A esquerda é épica; a direita, realista. A esquerda se acha mais inteligente do que nós; a direita o é.
E, para terminar, lembro-me de outra polêmica mais antiga, também entre pessoas inteligentíssimas e cultas.
Eram dois marxistas sérios discutindo com o grande liberal José Guilherme Merquior na TV.

Os dois esquerdistas desfiavam os grandes erros do comunismo, numa autocrítica lúcida e autêntica: “Ah... porque erramos em 1935, na Intentona, em 1956, na Hungria, em 1968, em Praga, em 1968, no Brasil, erramos nisso, naquilo, aqui, acolá... etc”. José Guilherme não se aguentou e disparou: “Por que vocês não desistem?” .

Quarenta anos de espera. Por Vittorio Medioli

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, na última decisão, deixou-me perplexo, concedendo liminar que suspende o processo de extradição de Cesare Battisti, italiano refugiado no Brasil. Deixou assim ao colegiado do STF o veredito para 24 de outubro. Embora o tempo esteja escasso na Alta Corte, isso representa mais uma perda de tempo e reitera uma intromissão num affair de Estado, e não de justiça.
Battisti é um condenado à prisão perpetua na Itália; nunca apresentou defesa aos tribunais de seu país, já que as possibilidades de sair inocentado eram nulas. Nunca explicou o inexplicável, escondendo-se como perseguido de uma democracia!
Fugitivo da nação que o condenou por quatro assassinatos torpes, transitou nos últimos 40 anos por vários países, que o abrigaram com honras marxistas.
Marxista ele não é, apenas tomou emprestada a ideologia para esconder sua insuficiência moral, até aprender a desempenhar o papel de dublê de ideólogo.
Até o Partido Comunista italiano e seus satélites, que conhecem bem Battisti, nunca gastaram uma palavra em defesa dessa figura, eles também o querem de volta. Os requerimentos de extradição do governo italiano espelham a unanimidade: a necessidade de justiça.
Hoje no poder está o partido sucedâneo do Partido Comunista; voltando, não vai cair nas garras de fascistas.
Para entender melhor o sucesso internacional dele, é preciso recorrer a um ex-presidente francês, que, sofrendo de antipatia ancestral pela eterna rival, aproveitou a figura de Battisti para vender a imagem do italiano anti-herói. Compreensível para François Mitterand, forjado entre duas guerras mundiais, brigas leste versus oeste, socialismo contra liberalismo, esquerda contra direita.
Curtido e viciado na Guerra Fria, nas conspirações, no terror – erguido à Presidência da República da França, ateu confesso, intelectualmente árido, precisava atender como bom demagogo o atávico ódio à Itália dos gauleses de Vercingetórix, vencidos por Júlio César.
A milenar rivalidade pode ser entendida apenas por quem a tocou como complexo de inferioridade da França, cuja civilização nasceu de uma costela de Roma, assim como sua língua.
Pisotear na Itália, em sérias dificuldades na década de 70, recuperando-se da derrota da Segunda Guerra Mundial, era tudo que um demagogo agricultor francês poderia sonhar. E, quando surgiu uma figura tenebrosa, um anti-Leonardo da Vinci, um anticristo para se contrapor à Igreja Romana, o ateu Mitterrand adotou Battisti, “Ecce homo italicus”. Mitterrand ergueu um contraponto estúpido e fez dele a forma de minorar a Itália e dela se distanciar. Vingar-se-ia de Roma como tosco provinciano gaulês e, mais ainda, como ateu que em Roma é obrigado a reconhecer os méritos civilizatórios.
Na história da França, o italiano aparece com recorrente insolência para os gauleses. Desde Júlio César, todos os papas, Catarina de Médici, o imperador Napoleão Bonaparte sofreram a inteligência italiana. E, para irritá-lo, está ainda no Louvre a mais procurada obra de arte de Paris, produzida em Florença, por Leonardo da Vinci.
Mitterrand nunca teve a elegância que fez a fama de Paris. Um tosco provinciano acabrunhado. Escolheu a triste figura de Battisti para mostrar ao mundo o italiano dos sonhos dele. Um delinquente, inculto, que mata pelas costas inocentes indefesos.
Sem poder declarar guerra pelas armas, Mitterrand a declarou rasgando as normas europeias, a diplomacia, adotando a antítese de Leonardo da Vinci para compensar os complexos nacionais de inferioridade. Como a dizer: “Italiano é isso aí”.
E, por incrível que pareça, a largueza dos italianos não entendeu exatamente isso. Um povo miscigenado não tem tempo para xenofobia. Assim respeitam o francês e o hospedam com carinho, apesar de não serem retribuídos na França.
Mitterrand, ateu tardiamente convertido ao “caviar e champanhe”, precisava do conflito étnico, de se imiscuir, cultivar ressentimentos como um líder barato (que se foi sem deixar saudade). Desafiar uma decisão soberana da Justiça italiana o deixava altivo em sua pequenez diplomática.
Em seu longo mandato presidencial se esquivou de visitar a Itália, o fez raríssimas vezes, forçado por compromissos internacionais.
O jovem Battisti nem sequer foi aceito nas Brigadas Vermelhas, que conheceu no cárcere romano de Regina Coeli quando cumpria pena por furtos e assaltos à mão armada em cidadezinhas do Lazio. De origem humilde, aluno que preferia matar aulas e viver de furtos a estudar. Com sinais de desajustado social, tentou se arrolar nas famosas Brigadas, que o descartaram por ser excessivamente instável e imprevisível. Não servia para nada, nem para bucha de canhão. Dessa forma, ao ser solto, migrou para Milão, entrando numa milícia proletária armada, rebarba de movimentos ideologizados, vivendo de assaltos a lojas, carimbados de genéricos revolucionários.
Celebrizado por Mitterrand, bajulado como espécie folclórica nos círculos do “caviar” de Paris, acostumou-se a seu papel de sortudo. Com a queda de Mitterrand, razão de sua boa vida, migrou para vários países até se abrigar sob as asas de Lula, agora associado a escândalos de corrupção e a Battisti ainda mais execrado.
O Cesare que de Júlio não tem nada é visto em Roma como um desaforo à soberania da Justiça nacional e criou muito mal-estar contra gauleses e brasileiros.

A Itália não aceita mais interferência, o quer de volta para encerrar um vexame, entendido como ofensa, que dura 40 anos. STF, para quê? Essa é pergunta que a Itália se faz.