sexta-feira, 25 de setembro de 2015

‘Estuprando os anais’, por Helder Caldeira

Deve ser profundamente vergonhoso para a presidente Dilma Rousseff assistir aos descalabros que os anais de seu (des)governo estão produzindo. É demasiado triste, e deveras criminoso, constatar que ideologias político-partidárias, empoleiradas no ambiente de governança, estão escrevendo a História do Brasil sob o signo do absoluto desprezo por aquilo que convencionou-se chamar de Res publica e que, neste quinhão tropical do planeta, ganhou contornos de montículo de apaniguados cupins.
Foi-se a época quando a documentação oficial da Presidência da República e de seus Ministérios, do Congresso Nacional e das cortes de Justiça era farto material a narrar, com seriedade, e até digníssimas transgressões, os tempos da sociedade brasileira. A epistemologia da identidade nacional revelada em cartas, discursos, acórdãos, ofícios, memorandos e todo vasto universo de documentos dos Três Poderes. O extraordinário valor do cacófato: foi-se o tempo...
Daqui 100 anos, quando algum historiador vasculhar os documentos deste nosso conturbado tempo, verificará que as autoridades do Brasil protagonizaram o afogamento das instituições nas águas rasas da imbecilidade. Presidentes, ministros, senadores, deputados e o grosso caldo de assessores de coisa nenhuma vociferando contra o império da Lei, atacando o Estado Democrático de Direito, vomitando impropérios, profanando registros históricos com linhas beócias. A ausência de firmeza de caráter e de convicções abunda nos anais brasileiros deste início de século XXI.
Faz lembrar Guimarães Rosa — por Dilma tão celebrado, ainda que pouco decantado — em sua Magnum opus “Grande sertão: veredas”. Escreveu, em quase vaticínio: “O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juízo de raiz? Não se tem onde se acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve.
Não por acaso — e talvez por enorme simbolismo —, depois que o topo da cadeia santificou a mandioca e beatificou o milho, restou ao Ministério da Cultura cravar nos registros oficiais da República uma peça repugnante. Trata-se de uma nota oficial de esclarecimentos, assinada pela Assessoria de Comunicação Integrada e publicada no dia 17 de setembro de 2015 no site do MinC e nas redes sociais com o título: “Cultura e informação melhoram até os reaças”. Com direito a smile e toda pândega lambança entre partido político e Estado, entre o viés de bandos privados e os bens públicos, marca indelével do aparelhamento que o PT promoveu nas instituições.
É absolutamente inaceitável que um órgão de Estado permita a utilização de instrumentos oficiais para encangalhar ideologias e hastear bandeiras duvidosas. Se o titular da pasta foi aviltado por declarações de “reacionários” — “a despeito da irrelevância”, diz a nota —, há um foro específico para que ele possa, legitimamente, buscar a reparação: chama-se Poder Judiciário. Não será, e isso é certo, uma postagem em redes sociais, carregada de embustes pueris, a adequada defesa.
Aliás, cumpre questionar ao Exmo. Sr. Ministro: está sobrando tempo à vossa equipe para elaboração de respostas a irrelevâncias? O Ministério da Cultura consegue distinguir o que é relevante daquilo que é irrelevante? Afinal, o próprio texto da nota oficial revela o contrassenso ao que se imagina e espera de cidadãos com algum trabalho a executar num governo, não obstante custeados pelos impostos cobrados do povo brasileiro.
Petulância, arrogância, imodéstia, baixíssimo domínio da ferramenta linguística. Nada que remeta minimamente à seriedade que uma nação almeja de seus governantes e dos asseclas que gravitam às cercanias do umbigo do Estado brasileiro. Para resumir a ópera dos malandros, a tal Assessoria de Comunicação Integrada estuprou os anais com sua dialética e pornográfica suruba ideológica. Lamentável.
A propósito, considerando o nível da nota oficial do Ministério da Cultura, destaca-se: por “ANAIS”, este substantivo masculino plural — do latim, annales —, leia-se “1) História de um povo contada ano por ano através de documentos; 2) Publicação periódica, anual; e 3) Publicação referente aos atos e estudos científicos, literários ou de arte” (Dicionário Michaelis, 2015). Parafraseando o vergonhoso texto da turma da Cultura (?!), cumpre reiterar: aprendam mais sobre isso! Qualquer outra acepção revela apenas a necessidade de assepsia.



HELDER CALDEIRA: Escritor e Jornalista Político

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