sábado, 7 de junho de 2014

Artigo: “Crise de bons modos”. De Helder Caldeira

Reza a cartilha politicamente correta, em seu vetusto ditame primeiro, que à espécie Homo sapiens, principalmente àquela nascida em solo tupiniquim, deve-se render toda boa-fé. Dá-se muito crédito ao brasileiro e, graças à cegueira hipócrita, qualquer crítica ao tal “povo” imediatamente é jogada no balaio da “síndrome de vira-lata”. Ao sabor desse descalabro endêmico e cotidiano, restou fácil apontar o dedo para os (des)governos e culpá-los por nossas mazelas.
À sombra da selvageria comercial, há aqueles que enxergam tempos extremos, já que pensamento fartamente lucrativo. À barbárie política cumpre insistir na alcunha do mero “pessimismo de setores”, outro logro lucrativo. Enquanto duelam pelas bordas recheadas com o metonímico catupiry da miséria sociocultural, o cerne da questão segue inominável. Dar nomes aos bois certamente não constará nos discursos dos candidatos ao trono planaltino.
Volto à minha infância, na tentativa de encontrar uma das sementes. Quando criança, na conturbada transição entre as décadas de 1980 e 1990, era bastante comum ouvir dos adultos que a delicadeza seria um sinônimo de viadagem. Na gigantesca e mazelar base da pirâmide social, um homem ornado de boas maneiras era viado. Sim, viado! “Chamar viado de ‘veado’ é coisa de viado”, concluiu o genial Millôr Fernandes em entrevista ao editor Luiz Costa Pereira Júnior, para o primeiro número da revista Língua, em 2005.
Noutras palavras, considerando a hipocrisia tola que tinge a fantasia dos pobres de espírito, a maior fatia da população brasileira estava a demonizar os bons modos. Irrompemos o século 21 com pais ensinando aos filhos que a grosseria era uma espécie de falo hercúleo, sacrossanto dote para a vida em sociedade. Vistas como mera caçapa, a sobrevivência das meninas restou condicionada à escolha dentre brutos, ou seja, “não-viados”. Uma tragédia antropológica, em suma.
Com a ascensão das redes sociais, a explosão horizontal da comunicação e a extraordinária exposição desse“jeitinho de ser”, faz-se de besta quem diz não compreender como as relações alcançaram nível tão tensionado no Brasil contemporâneo, mormente feudal.
Afastados das boas maneiras — essa tentação demoníaca! —, seguimos atirando privadas do alto de arquibancadas de estádios de futebol; queimando ônibus como bandeira de protesto; acreditando em qualquer mentira que possa justificar a reunião da horda ignóbil que deseja fazer justiça com as próprias mãos, ainda que essa tal “justiça” compreenda um arco que vá de acorrentar um adolescente infrator ao assassinato de uma dona de casa inocente; e, por óbvio, comparecendo às urnas para cumprir o dever cívico de sustentar a“democracia de umbigo” vigente. E você ainda não sabe por que faltam bons modos na política brasileira?! Contar-lhe-ei a fórmula da pólvora: nossos políticos não vêm de Marte!

Em estado bruto — o sentido já desvelado à origem da expressão —, nascemos sob o signo da grosseria. Não há escolha, não há alternativa. Outrossim, permanecer grosseiro ao longo da vida é uma decisão. Há escolhas, há alternativas. Grosseiro é quem quer. E o nome do boi que anda chifrando a vida em sociedade é “crise de bons modos”. Faz-nos bárbaros decadentes; idiotas com muito samba no pé e pouco raciocínio; boçais que optam acreditar que futebol é investimento e educação — lato sensu! — é perda de tempo; mamíferos de um Estado tetado. Uma crise grave. Gravíssima.

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